Livros de Teologia


quarta-feira, 13 de julho de 2016

Mentalidade de escravo

"Toda a congregação dos filhos de Israel murmurou contra Moisés e Arão no deserto; disseram-lhes os filhos de Israel: Quem nos dera tivéssemos morrido pela mão do Senhor, na terra do Egito, quando estávamos sentados junto às panelas de carne e comíamos pão a fartar! Pois nos trouxestes a este deserto, para matardes de fome toda esta multidão" (Ex 16.2-3).

O livro de Êxodo foi escrito por Moisés e registra a saída do povo israelita do Egito, logo após as famosas dez pragas enviadas por Deus sobre aquela nação, findando um período de quatro séculos de escravidão dos descendentes de Abraão sob o jugo egípcio (Ex 12.40-41).
Quatrocentos anos é muito tempo. Pelo menos seis gerações de israelitas nasceram, viveram e morreram na condição de escravos, trabalhando forçada e penosamente sob as chibatas egípcias (Ex 1.14; 5.7-8). Nós, que nascemos livres, temos dificuldade até de imaginar as agruras e penúria sofridas por aqueles que amargaram os grilhões da escravidão. Mas, num esforço didático aqui, tente imaginar como as crianças israelitas cresceram durante aquele período; como elas sentiam e pensavam, obrigadas desde tenra idade a trabalharem de sol a sol, privados da dignidade humana e de qualquer ato de compaixão da parte daqueles que usufruíam do seu suor.
Todavia, muitos dentre o israelitas oravam a Deus, suplicando por salvação e libertação, e Deus ouviu: "Disse ainda o Senhor: Certamente, vi a aflição do meu povo, que está no Egito, e ouvi o seu clamor por causa dos seus exatores. Conheço-lhe o sofrimento" (Ex 3.7; cf. 2.23; 3.9). O Senhor levantou Moisés para liderar a saída dos israelitas do Egito. Agora tente imaginar o tamanho da alegria dos israelitas no dia da saída, no dia da libertação! Era só festa, risos, e júbilo no meio do povo de Deus! Andaram um pouco, e faraó arrependeu-se de ter deixado ir aquela grande força de trabalho escrava, mandando o exército atrás do povo, mas Deus livrou Israel poderosamente na travessia do Mar Vermelho, e essa é uma história muito conhecida (cf. Ex 14). Aí a alegria tomou conta novamente do coração do povo, mas não por muito tempo.
O texto em epigrafe registra a murmuração do povo contra Moisés e Arão, seu irmão, líderes do povo. Isto não aconteceu muito tempo após a saída do Egito. O povo reclama da falta de comida, e não obstante toda a demonstração de poder e cuidado que o Senhor realizara na saída do Egito, o povo esquece logo de Quem é Deus e do Seu imensurável poder, mas lembra-se das panelas de "carne" do Egito, e do pão "a fartar". O que é isso? Eu tenho chamado esse fenômeno de "mentalidade de escravo". Quem viveu como escravo muito tempo tende a conservar a forma de pensar, isto é, a mentalidade própria de um escravo, mesmo após receber a libertação. Note bem as características da mentalidade de escravo.
Aquele povo diz que sentava-se junto às panelas de carne. Mas escravos não comiam carne. O que comiam, de fato, eram os restos do animal abatido pelos egípcios, que comiam a carne e deixavam as vísceras e miúdos para alimentar os escravos. Eles também diziam que tinham pão a fartar, mas escravos egípcios nunca tinham "pão com fartura", tinham apenas pão todos os dias. Mas um escravo não consegue perceber que dois pães por dia e um punhado de tripas de animal não é uma refeição digna. Para alguém que nasceu escravo, isso é tudo que ele espera da vida, a ponto de sentir saudade do cozido de vísceras e do pão de escravos. A primeira característica da mentalidade de escravo é não conseguir dimensionar e discernir o que realmente significa dignidade. A segunda é dar-se por satisfeito com o que é próprio de escravos.
A saudade manifestada pelo povo também revela a terceira característica da mentalidade de escravo, que é preferir a sensação de "segurança" da escravidão em vez da experiência de liberdade que lhes custe algo. Sim, os israelitas estavam preferindo panelas de vísceras e pão no lugar da liberdade, só porque a liberdade traz consigo desafios e surpresas, fazendo-nos engolir a seco muitas vezes, e o friozinho na barriga vem junto. Escravos não querem essa sensação de "incerteza", eles preferem a "segurança" do pão. Mas homens livres preferem a liberdade a todo custo. Quem, em sã consciência, escolheria a escravidão?
Na vida espiritual acontece a mesma coisa. Jesus ensinou que todo aquele que comete pecado é escravo do pecado (Jo 8.34). A mentalidade de escravo pode ser observada em muitas pessoas que, mesmo aparentando estarem libertadas do pecado, ainda pensam como quem vive no pecado. São pessoas que dizem estar libertas do pecado, dizem crer em Jesus, mas agem e mentalizam como escravos. Pessoas que não conseguem discernir a dignidade do Evangelho e fé em Cristo, e sentem-se confortáveis com uma fé medíocre e com as "panelas de vísceras espirituais" que o mundo lhes oferece. Preferem o pão do Egito ao Pão vivo que desceu do céu! Mesmo dizendo irmãos, alegando fé em Jesus, vivem preferindo os prazeres da carne do que a liberdade do Espírito de Deus, pois a liberdade do Espírito também traz consigo os desafios a nossa fé. Viver o Evangelho, em obediência a Cristo e guiados pelo Espírito Santo é desafiador e exige muito de nós, e aqueles que ainda têm a mentalidade de escravo têm medo disso, e recorrem à "segurança" do que a vista enxerga e do que as mãos conseguem tocar. Já os crentes realmente libertos por Cristo vivem pela fé e não se guiam por vista (IICo 5.7; Rm 1.17; Gl 3.11; Hb 10.38). Livres são aqueles cuja liberdade vem de Cristo e Sua Palavra (Jo 8.32, 36), e não aqueles que estão simplesmente caminhando com os livres, como estavam aqueles israelitas. Ainda mais, livres são aqueles que se tornaram escravos de Cristo (ICo 7.22; Gl 1.10).
Agora, nos vem a pergunta: e nós? Somos de fato livres? Ou ainda temos a mentalidade de escravo? Temos a mente de Cristo, que pensa como um ser livre (ICo 2.16), ou a mente de um escravo do pecado? Somos escravos do pecado ou de Cristo? São boas perguntas para nossa reflexão pessoal...

Deus abençoe.

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